No fim de 2008, o Brasil acompanhou
atônito o desastre das enchentes de
Santa Catarina. A Labradora Sara, 3
anos, foi um dos cães que arriscaram
a vida na região à procura de vítimas.
Ao seu lado, o sargento e adestrador
Jurandir Santos de Lima, responsável
pelo grupo de busca, salvamento e
resgate do Corpo de Bombeiros de
Sapiranga. É ele quem conta:
Chegamos a Santa Catarina em 28 de novembro e trabalhamos 15 dias na região. O cenário era de caos total. Tudo alagado, com deslizamento de
terra, casas derrubadas, muita lama. O terreno era mais que hostil. Algo inimaginável. Tinha poste de concreto quebrado no meio, construções aos
pedaços, bois e tudo quanto é bicho morto no caminho.
Cenário caótico: no alto da página, a Labradora Sara e o sargento Jurandir mergulham na lama à procura de
sobreviventes. Na outra foto, equipe de busca e as duas duplas de cão e homem designadas para a mesma área.
Fotos: Arquivo Corpo de Bombeiros de Sapiranga/RS
O cheiro era terrível. Minha equipe era formada por duas duplas de homem e cão. Eu com Sara e o soldado Julenir Cardoso Duarte com o Labrador
Franck. Fomos designados para a busca
de pessoas soterradas em áreas de deslizamento.
Os cães atuavam soltos. Às vezes, tínhamos
de segurá-los ou colocá-los na guia porque o
lamaçal se tornava arriscado. A lama chegava
a bater no meu peito. E chovia bastante, de
chuva média a torrencial. Trabalhávamos em
torno de sete a oito horas por dia. O certo é o
cão trabalhar duas horas e parar duas. Naquela
situação, não dava.
Quando Sara ficava muito cansada, parávamos
alguns minutos. Às vezes, também
tínhamos de fazer uma pausa para avaliar qual
estratégia adotar na transposição de certos
obstáculos que apareciam no caminho. Não
deixava de ser um descanso. Em 15 dias de tarefa,
Sara só teve um dia de folga. Isso porque
distendeu a pata, provavelmente ao pular entre
os galhos de uma imensa árvore derrubada.
Mas a resistência dessa cadela é enorme.
Sara tem aquela estrutura roliça de Labrador.
Para quem não conhece, ela pode parecer
gorda e pouco atlética. Puro engano. Além de
energia física, um cão de salvamento precisa
de coragem e firmeza psicológica. Certos cães,
quando presenciam situações inesperadas ou
de grande estresse, como desmoronamentos
e explosões, demonstram instabilidade em
ações futuras. Ficam traumatizados. Sara é
destemida e segura. Encara qualquer coisa
sem vacilar. O terreno que enfrentamos em
Santa Catarina era terrível. Muitos cães se
intimidariam com aquilo. Tínhamos de escalar
pedras, saltar árvores caídas. Atravessamos
até rio com correnteza. Numa ocorrência
como aquela, agir com desenvoltura na água é fundamental. Sara, como bom Labrador,
gosta de nadar, de ficar molhada. E aguenta
bem frio e calor.
Ela teve o treinamento completo para
encontrar pessoas vivas, o que demora de 1
ano e meio a 2 anos para ser concluído e, basicamente,
é feito com simulações. O cão tem
de encontrar figurantes de diversas etnias e
idades escondidos nos mais variados ambientes,
como matas e escombros. Onde houver
sobreviventes, Sara certamente irá ao encontro
deles. O índice de acerto dela nos treinos é de
cem por cento. Antes da tragédia de Santa
Catarina, Sara participou de três ocorrências
reais. Nas três, localizou as vítimas. Também
esteve de prontidão nos Jogos Pan-Americanos
do Rio de Janeiro. Felizmente, lá não houve
emergências em que precisasse ser usada.
Já em Santa Catarina, 12 pessoas soterradas
devem a vida a ela. Em todas as localizações,
Sara agiu como o esperado. Isso é, latindo no
local onde estava a vítima até a gente chegar
e efetuar o resgate. Se demorarmos meia hora
para aparecer, o cão tem de latir o tempo todo,
sem parar. Há cães que não fixam tão bem
a forma de sinalização aprendida no treino.
Quando se trata de latidos, eles às vezes latem.
Outras, não. Ou, então, latem, mas logo param.
Sara fi xou logo o que se queria dela e, a partir
daí, mostrou consistência. Confio nela. Sei que,
se achar alguém, latirá até eu aparecer.
Foto: Sergio Ordobás
O que realmente me surpreendeu em
Santa Catarina foi Sara ter localizado cinco
vítimas mortas na região. O treino para esse
tipo de busca é outro, envolve odores e métodos
distintos. Em geral, o cão especializado
em localização de sobreviventes não encontra
cadáveres, e vice-versa. Dois meses antes da
catástrofe, ensinei a Sara o básico dessa modalidade.
Não esperava que se desempenhasse
tão bem na prática. Isso mostra o quão focada
ela é, o quão rápido aprende e o quão disposta
se mostra a fazer o que aprendeu. Há cães
que aprendem rapidamente, mas nem sempre
querem pôr em prática o aprendido.
Na nossa unidade, é unânime a opinião de
que o Labrador é a raça de melhor potencial
para a função de busca. É a que mais reúne
exemplares aptos. Além das qualidades que já
mencionei em Sara, esses cães são brincalhões
e sociáveis, aspectos fundamentais nesse
trabalho. Tanto no treino como nos casos
reais, a recompensa do cão é brincar. Se ele
não for ávido por brincadeiras, não se sai tão bem. Quanto à sociabilidade, cães de busca
atuam em meio a pessoas e outros animais.
Não podem ser hostis. Quando se trata de
localizar gente viva, nem se fale. As vítimas
quase sempre estão debilitadas, assustadas.
O cão não pode amedrontá-las. O Labrador,
com aquele jeito amigável, até tranquiliza a pessoa. Todos se apaixonam pela Sara. Para
mim, então, ela é pura alegria. É minha amiga,
companheira. Moramos no quartel e ficamos
sempre juntos. Hoje, dia sim, dia não, reforço
em Sara o treino de busca de sobreviventes e
trabalho para aperfeiçoá-la na localização de
cadáveres.”
Foto: Sergio Ordobás
Fonte: Transcrito da
Revista
CÃES & CIA,
Edição nº 362 de julho de 2009, Inédito - Labrador- Uma raça de muitos heróis.(Parte da matéria)